Comigo não queria falar das pormenores da sua vida. Um dia perguntei-lhe" "Aonde trabalha?" Respondeu enigmaticamente: "Trabalhava em Alcântara..." Tinha percebido perfeitamente o que eu queria saber, mas não ele recusou de entrar no assunto (sem me ofender). Para muito tempo, eu só sabia que ele era "da outra banda."
Ele vadiava de casa em casa em Alfama, uns dias por semana. Encontrei-o muitas vezes na Baiuca, e anos depois também quando frequentava o Sr. Fado. Como muitos outros fadistas, não queria ganhar dinheiro através do fado: só queria era cantar, a conversar com amigos durante os intervalos ou enquanto ele esperava por sua vez. Fomos uma vez a um território diferente (a Graça) para visitar a Tasca do Jaime. Pôs-se de pé, introduziu-se com humildade, agradeceu a dona, e depois cantou dois fados do coração. Disse-me que gostou, mas percebi que o seu povo, e os seus lugares de hábito, foram todos de Alfama. Por outro lado, ele sempre estava disposto de ir conosco por qualquer lado: às outras casas de fado em Alfama, à Mouraria, etc.
A manter a ordem à porta da Baiuca |
Queria que a minha família fôsse portugueses: eu, a minha esposa, e os meus filhos. Ajudou-me com a burocracia portuguesa, e inventou planos fantásticos para que eu conseguisse manter uma presença permanente em Portugal ("compre um apartamento", "troque o seu trabalho", etc.). Fizemos percursos de pê ou de carro por várias zonas de cidade. Não era jovem, mas andava sempre velozmente, cheio de vontade para lá chegar.
Uma vez que visitámos Lisboa, queria buscá-nos no aeroporto. Disse-me que tinha um carro que servia. Não o achei possível. "Cabe, cabe. Não se preocupe", respondeu o meu amigo. Chegou com um Citroën antiquíssimo, que não foi nada grande. Mas ele não queria saber nada das minha dúvidas: com uma magia qualquer, conseguiu meter tudo lá dentro--cinco pessoas e todas as malas. Depois da visita, ao regressar ao aeroporto, ofereceu-me uma caixa de discos do fado. Não a queria, mas disse "Leve! Trago uma sempre comigo, e vou dando-a quando me apetecer, depois compro mais uma." Assim, o fado e ele andava sempre a par.
Quando eu estava fora de Portugal, telefonava-o por Skype, e por isso ele não reconhecia o número. Quando atendeu ao telefone, dizia "Alô" duma maneira que transmitiu uma mensagem clara: "Como é que vais explicar esta intrusão?" Eu respondia, "Ó José Maria, é David Mendonça." "Ó David, como está amigo!" E depois era tudo alegria. "É a amizade que conta", dizia ele. (Mesmo na rua, eu nem sempre percebia quando ele sentia pró ou contra alguém, pois resmungava à frente de todos.)
Na Tasca do Jaime |
O José Maria vivia com o fado sempre no peito. Quando falávamos, às vezes exprimia os seus sentimentos em termos fadista, sem pretensões e como se fosse a sua própria linguagem. Queria ensinar-me toda a história do fado do que tinha conhecimento, a qual assisti com toda a minha atenção. Introduziu-me ao mundo ocupado por aquelas pessoas que vivem para o fado, e não à conta do fado. O fado do José Maria era um fado puro, que refletia uma sensibilidade profundamente humana, cheia de honestidade, e que não aceitava a falsidade.
A última vez que o vi foi recentemente. Estivemos em Lisboa para uma curta visita. Já tinha percebido que ele não estava bem. Falámos brevemente por telefone, mas foi preciso confirmar os pormenores com a filha dele. Estava sentado à porta da Baiuca, com muitos amigos ao seu redor. (Logo descobri que ele sofreu bastante para lá chegar.) "Vou cantar" disse ele. A filha protestou, também eu. "Quero." Pediu desculpas da minha esposa por não ser capaz de cantar "Leio em teus olhos", que sempre cantava para ela, e disse que ia cantar outra coisa. Então pôs-se de pé. Num instante, a Baiuca e tudo que não era o meu amigo evaporou. Cantou um "Senhora da Nazaré" do fundo da alma, com toda a força da vida, com muito mais força do que o corpo tinha. Depois saiu subitamente, completamente gasto. Falámos lá fora para uns minutos, mas foi a última vez que o vi. Era tudo pelo fado, e tudo por amizade.
Também recordo o José Maria...quantas vezes no Sr. Fado ele cantou fados que eu lhe pedia..."Leio em teus olhos"..."Viseu"...etc...se acaso existe um "céu" e ele lá estiver decerto esse céu ficou muito mais rico...Até logo José Maria...um abraço de muita amizade e admiração!!!Jorge
ReplyDeleteAmigo Jorge, muito obrigado pelo seu comentário. abraço..David
ReplyDeleteTio do meu coração. Meu amigo sempre.
ReplyDelete