O fado vive através do trabalho de muitas pessoas, e muitas destas são esencialmente desconhecidas fora do país mas bem conhecidas dentro. Acho uma destas o Tony Loretti: organizador de espectáculos de fado—feitos para fins predominantamente de benficiência—e uma personagem muito ligada ao Bairro da Mouraria, o berço do fado.
Noutros tempos, o fado tinha lugar de honra na Mouraria, um dos bairros historicamente mais associados a este género música. Ainda há traços evidentes desta rica tradição. Quem passa por detrás do Centro Comericial do Martim Moniz vê uma escultura erguida pela Câmara Municipal de Lisboa que fala desta tradição, e da Mouraria como sendo o "berço" do fado. Viveram lá muitos nomes associados ao fado, entre eles duas figuras preponderantes, cujas casas ficam frente-a-frente na Rua do Capelão: a Severa, fadista do século XIX; e o Fernando Maurício, do século XX.
A construção e a sociedade da Mouraria sofreram uma evolução durante séculos de existência, tal como Alfama e outros bairros históricos de Lisboa. Mas foi na década de 50 que a Mouraria foi alvo de um grande choque, que perturbou não só os aspectos físicos do bairro, mas também os espirituais, que provocou um impacto no fado. Esta 'renovação' do bairro, que implicou a demolição de muitos edifícios típicos e a deslocação de muitas pessoas, foi descrita recentemente num livro escrito em inglês entitulado “The Reconstruction of Lisbon” (“A Resonstrução de Lisboa”) escrito por Michael Colvin. Agora para quem visita o bairro é preciso procurar nos becos escondidos para descobrir onde o fado mora. Na mencionada Rua da Capelão, por exemplo, há uma pequena taberna, chama-se 'Da Severa', onde se encontram várias placas com fotos, nomes e imagens que sugerem o fado—mas é tudo escrito em código. Um dos mais emblemáticos códigos é o "GDM". Nas notícias, aparece quase sempre assim. Quem sabe, sabe; quem não sabe, tem de procurar. O GDM significa o "Grupo Desportivo da Mouraria", onde se situa a "Catedral do Fado", salão amplo onde cantava o Fernando Maurício e muitos outros, ao longo de muito tempo, num espaço dedicado ao fado e também à transmissão da força e da boa vontade do fado em relação às pessoas que mas precisam.
É certo que falar do fado na Mouraria implica falar do Fernando Maurício. Diz o Tony Loretti que o seu cantor mais memorável foi exactamente este rei do fado. “Porque alem de nascer na Mouraria, é um fadista que não se esquece, gente castiça. E toda a gente gosta de imitar o Maurício, mas nenhum consegue. É um estilo próprio, é um estilo que lá se ouve.” Quem assiste o fado típico em Lisboa verá (e ouvirá) que o Fernando Maurício continua a influenciar os cantores.
Foi neste espaço que o Tony Loretti organizou o seu primeiro espectáculo de fado, há aproximadamente dez anos. Organizou-o lá porque, segundo disse o Tony, "a Mouraria precisava." Os espectáculos mais típicos do Tony Loretti talvez possam ser caracterizadas como 'maratonas do fado'. Assisti a algumas destas em Lisboa. São espectáculos com a duração de quatro ou mais horas, com intervalos curtíssimos, e muitos fadistas. Nestas, cada fadista canta três ou quatro fados na sua vez, e depois vem o seguinte. A lista de fadistas pode incluir alguns 'de raça', como Ricardo Ribeiro, mas também alguns menos conhecidos, gente que canta fado mas não com fins lucrativos. O elenco surge à maneira portuguesa: espontâneamente, e nunca se sabe exatamente quem vai cantar. É certo que não são espectáculos feitos para turistas, pois há poucos intervalos: são espectáculos de convívio, de arte, e, por vezes, de beneficência.
O Tony Loretti já organizou alguns espectáculos para ajudar crianças e deficientes. Disse-me "Agora fiz um espectáculo para quatro crianças deficientes." O lucro do evento foi de 600 euros para cada criança, e uma cadeira de rodas. Acrescentou o Tony: "Não ganho nada aqui. Dei tudo a eles. Quem o organizou fui eu. Mas os meus amigos fizeram-no em minha homensagem, e com a ajuda de todos conseguimos." Com eventos desta escala, há sempre o medo de falha. As coisas podem não correr bem, e assim se isto acontecesse ficariam todos deprimidos--e potencialmente em risco financeiro.
Podemos notar que o Tony, tal como muitos outras pessoas dentro do fado, zangou-se por algum tempo com o bairro onde tinha feito tantos espectáculos. Mas, tal como nestes outros casos, está de regresso. “Já me pediram para ir para lá. Voltei e tenho o bichinho.” diz o Tony. “Na Mouraria faço um espectáculo por mês. Todos os meses faço espectáculo na Mouraria e temos sempre a sala cheia.”
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