Num ensaio dedicado ao tema "O fado e a alma portuguesa,"[1] o poeta Fernando Pessoa disse que "a canção é uma poesia ajudada." Mas quais são as pessoas que dão esta ajuda? A resposta não é óbvia, pois é muito mais comum ouvir os nomes dos cantores do que os nomes dos poetas (ou até dos músicos) que trabalham para o fado. Com esta série de ensaios, pretendo divulgar algo sobre a história e as actividades contemporâneas de vários poetas ligados ao fado.
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Tiago Torres da Silva |
O
Tiago Torres da Silva, natural de Lisboa e nascido em 1969, é um escritor cujas letras de fado já foram cantadas por muitos fadistas ao longo dos mais de 20 anos da sua carreira.
O autor concorda com as palavras de Pessoa "porque no fado a primazia é da letra--sempre." Continua, "No fado a letra comanda. O cantor tem que entender muito bem as palavras que canta para as transformar em algo que qualquer pessoa consiga entender. É devido a personalidade que a fadista põe nas palavras que canta que o resultado se torna universal."
Durante muitos anos, antes do tempo do CD, a altura em que as letras foram incluidas muitas vezes nas anotações, a poesia do fado era transmitida principalmente de uma forma oral. No início da carreira do Tiago Torres da Silva, o poeta que mais o emocionou foi o
Pedro Homem de Melo. Na poesia do Linhares de Barbosa, o que ele aprendeu foi que "o fado deve contar uma história--Quando ouves um poema do Linhares de Barbosa, vês tudo"." Para quem quer saber mais sobre estes autores (ou até quer ler mais), a situação actual é mais exigente do que outrora, altura em que a poesia do fado foi transmitida essencialmente de uma forma oral. Agora, as letras dos poemas estão escritas nas notas dos CDs, postas na Internet (ex., no sítio
fados do fado), e por vezes traduzidas em várias linguas.
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Pedro Homem de Melo |
Há vestígios desta tradição oral nas relações entre os poetas de hoje em dia. Das letras que ele escreveu para canções, por exemplo, ele nunca publicou nada. Mas neste momento, com mais de 400 canções gravadas, está a pensar compilá-las. Daqui um ou dois anos, ele talvez lance um livro com pelo menos parte dos seus poemas cantados.
A admiração que sente pelos colegas de hoje em dia não é necessariamente produto de contacto pessoal: até agora, o Tiago nunca se cruzou com a Manuela de Freitas, a poetisa de que ele mais gosta. Diz o Tiago, "Ela escreve fado mas não vai às casas de fado." Segundo ele, ela é "um prodígio" no que diz respeito a poesia do fado. O Tiago tem mais contacto com os poetas José Luís Gordo e Mário Raínho, entre outros. Para ele, o fado "pode tirar um pé da rua, mas tem que deixar lá sempre o outro". Durante a nossa conversa, o Tiago elogiou muitos poetas, e até declamou letras de alguns.
O autor escreve todos os dias, porque tem muitas encomendas. "O meu ofício é escrever", diz ele, e "há muitos poetas que têm um ofício e também escrevem. Eu só vivo do que escrevo, mais nada."
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Amália Rodrigues |
Falando dos seus hábitos de escrever, diz, "Eu sou um pouco caótico quando escrevo. Por exemplo, eu sento-me à secretária a escrever, e de repente estou em cima da secretária, e depois estou em cima do armário, depois estou sentado no chão, e depois... Sou muito, muito caótico. E às vezes tenho que andar para desobstruir as ideias."
O trabalho dele é muito, e os temas são variáveis. Os que mais figuram na poesia dele direcçionada para o fado são o mar, a cidade de Lisboa, e também o fado em si. Gosta muito de escrever para o fado tradicional, "ancorado na tradição."
Fora do fado, ele gosta de escrever sobre a cidade de Rio de Janeiro. Ao perguntar-lhe qual o seu poema preferido, o autor não hestiou em responder com o título, "
Vou num rio", que foi escrito mais ou menos há vinte anos, quando
Amália Rodrigues ainda era viva, mas que ela não chegou a cantar (a letra desta poema está publicada no blogue do poeta). Esta letra foi vários artistas em músicas diferentes. Por exemplo, a Beatriz da Conceição cantou-a no fado
Varela, e a Anamar e a Rita Ribeiro no fado
Licas. Diz o Tiago sobre o poema que "Me reflecte muito", e que as letras desta obra eventualmente cristalizaram numa só frase: "Os rios são maiores do que o mar porque correm." O poeta acha-a a melhor frase da sua própria vida, que foi incluída numa peça de teatro que escreveu mais tarde, entitulado "É o Mar Alfonsina, é o Mar". Dos livros listados na Wikipedia, queria destacar o romance "Um S a mais."
Para além da música portuguesa, escreve muito para a música brasileira. Também tem encomendas para o teatro, para livros, e para crónicas nos jornais. Com tanto trabalho, diz ele, "Não fico à espera que a inspiração venha, não. Sento-me, e convoco a inspiração. Às vezes corre pior, às vezes corre melhor." Recentemente ele recebeu uma música brasileira escrita por Luis Felipe Gama, e ouviu-a cinquenta vezes. Depois, diz ele, "escrevi uma das melhores letras da minha vida. Fiquei impressionado comigo." Este modelo de trabalho serve-lhe bem: ele gosta mais de escrever quando a música vem primeiro, embora seja ao contrário por vezes com o fado. Diz que "A música faz-me reagir muito. Com o
Carlos Gonçalves, é a letra primeiro e depois a música; com
Ivan Lins, é ao contrário. São muito mais os compositores que decidem antes de nós, os poetas."
A
Sociedade Portuguesa de Autores, no âmbito da designação dada pela UNESCO ao fado, formou um grupo dedicado à divulgação do fado. O Tiago Torres da Silva faz parte deste grupo que, segundo o poeta, é muito recente mas que já tem um programa de trabalho em curso. Uma das preocupações deste grupo é a dos diretos de autores dentro do fado. Na tradição do fado, uma música (ex., a marcha do Alfredo Marceneiro) pode ser combinada com várias letras (o caso contrário também existe). Mas o sistema de registos só reconhece "canções": quer dizer, a junção de uma música e uma letra. Segundo o escritor, este sistema cria grandes problemas no que diz respeito aos direitos de autor.
O poeta chama a atenção para algumas perturbações no desenvolvimento recíproco da música e da letra do fado. Um dos problemas é a falta de pessoas aptas que queiram dedicar-se mais ao fado. Por agora, os novos escritores dentro do fado são poucos, e consequentemente os materiais novos são raros. Segundo o poeta, "Sinto que as pessoas são muito apegas ao que o Fernando Maurício fez, ou ao que a Amália fez." Ele acha a situação até "um pouco ridícula. Há jovens a cantar coisas que Amália cantou com 70 anos. Mas uma menina de 21 não tem a vivência para isto." Acrescenta, "O convívio entre os poetas e os fadistas é difícil, situação que não acontecia até ao fado estar tão na moda." Continua, "É mais fácil para mim mostrar uma canção a um grande cantor do Brasil do que mostá-la no meu pais mostrar a um fadista da nova vaga, salvo algumas excepções."
Segundo o Tiago Torres da Silva, neste momento dentro do fado "há muito sucesso, mas não há tanto coração como sucesso. E o fado sem coração a mim não me interessa." Mas em termos de arte de cantar e de dizer, ele opina que "há gente espantosa," entre os quais estão a Carminho, o Ricardo Ribeiro, e o Camané. Acrescenta, "Mas não sinto que haja algo de novo a aparecer. Sinto que em termos da proposta fadista, a última revolução foi aquela que o Alain Oulman e a Amália protagonizaram nos finais dos anos sessenta, início dos anos setenta." O autor não disse isto para se queixar--pois há muitos fadistas que tem cantado e que continuam a cantar os seus poemas--"disse-o apenas para iluminar uma situação que previra um corte potencial na tradição do fado."
O poeta põe um ponto final neste assunto da seguinte forma: "O fado quando não é cantado com o que nós vivemos, ou quando não é escrito com o que nós vivemos, ou quando não é composto com o que nos vivemos, fica sempre menos fado. Pode ficar uma muito boa música mas, atenção, fica menos fado."
Para quem quer saber mais:
Tiago Torres da Silva em
entrevista na RDP Internacional
Tiago Torres da Silva
a declamar no Palácio de Belém
Blogue do autor
Entrada no Wikipedia
Nota:
[1] Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional. Fernando Pessoa (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução organizada por Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1979. - 98. 1ª publ. in Notícias Ilustrado , 2ª série, nº 44, Lisboa, 14-4-1929.