Num ensaio dedicado ao tema "O fado e a alma portuguesa,"[1] o poeta Fernando Pessoa disse que "a canção é uma poesia ajudada." Mas quais são as pessoas que dão esta ajuda? A resposta não é óbvia, pois é muito mais comum ouvir os nomes dos cantores do que os nomes dos poetas (ou até dos músicos) que trabalham para o fado. Com esta série de ensaios, pretendo divulgar algo sobre a história e as actividades contemporâneas de vários poetas ligados ao fado.
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Tiago Torres da Silva |
O autor concorda com as palavras de Pessoa "porque no fado a primazia é da letra--sempre." Continua, "No fado a letra comanda. O cantor tem que entender muito bem as palavras que canta para as transformar em algo que qualquer pessoa consiga entender. É devido a personalidade que a fadista põe nas palavras que canta que o resultado se torna universal."
Durante muitos anos, antes do tempo do CD, a altura em que as letras foram incluidas muitas vezes nas anotações, a poesia do fado era transmitida principalmente de uma forma oral. No início da carreira do Tiago Torres da Silva, o poeta que mais o emocionou foi o Pedro Homem de Melo. Na poesia do Linhares de Barbosa, o que ele aprendeu foi que "o fado deve contar uma história--Quando ouves um poema do Linhares de Barbosa, vês tudo"." Para quem quer saber mais sobre estes autores (ou até quer ler mais), a situação actual é mais exigente do que outrora, altura em que a poesia do fado foi transmitida essencialmente de uma forma oral. Agora, as letras dos poemas estão escritas nas notas dos CDs, postas na Internet (ex., no sítio fados do fado), e por vezes traduzidas em várias linguas.
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Pedro Homem de Melo |
A admiração que sente pelos colegas de hoje em dia não é necessariamente produto de contacto pessoal: até agora, o Tiago nunca se cruzou com a Manuela de Freitas, a poetisa de que ele mais gosta. Diz o Tiago, "Ela escreve fado mas não vai às casas de fado." Segundo ele, ela é "um prodígio" no que diz respeito a poesia do fado. O Tiago tem mais contacto com os poetas José Luís Gordo e Mário Raínho, entre outros. Para ele, o fado "pode tirar um pé da rua, mas tem que deixar lá sempre o outro". Durante a nossa conversa, o Tiago elogiou muitos poetas, e até declamou letras de alguns.
O autor escreve todos os dias, porque tem muitas encomendas. "O meu ofício é escrever", diz ele, e "há muitos poetas que têm um ofício e também escrevem. Eu só vivo do que escrevo, mais nada."
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Amália Rodrigues |
O trabalho dele é muito, e os temas são variáveis. Os que mais figuram na poesia dele direcçionada para o fado são o mar, a cidade de Lisboa, e também o fado em si. Gosta muito de escrever para o fado tradicional, "ancorado na tradição."
Para além da música portuguesa, escreve muito para a música brasileira. Também tem encomendas para o teatro, para livros, e para crónicas nos jornais. Com tanto trabalho, diz ele, "Não fico à espera que a inspiração venha, não. Sento-me, e convoco a inspiração. Às vezes corre pior, às vezes corre melhor." Recentemente ele recebeu uma música brasileira escrita por Luis Felipe Gama, e ouviu-a cinquenta vezes. Depois, diz ele, "escrevi uma das melhores letras da minha vida. Fiquei impressionado comigo." Este modelo de trabalho serve-lhe bem: ele gosta mais de escrever quando a música vem primeiro, embora seja ao contrário por vezes com o fado. Diz que "A música faz-me reagir muito. Com o Carlos Gonçalves, é a letra primeiro e depois a música; com Ivan Lins, é ao contrário. São muito mais os compositores que decidem antes de nós, os poetas."
A Sociedade Portuguesa de Autores, no âmbito da designação dada pela UNESCO ao fado, formou um grupo dedicado à divulgação do fado. O Tiago Torres da Silva faz parte deste grupo que, segundo o poeta, é muito recente mas que já tem um programa de trabalho em curso. Uma das preocupações deste grupo é a dos diretos de autores dentro do fado. Na tradição do fado, uma música (ex., a marcha do Alfredo Marceneiro) pode ser combinada com várias letras (o caso contrário também existe). Mas o sistema de registos só reconhece "canções": quer dizer, a junção de uma música e uma letra. Segundo o escritor, este sistema cria grandes problemas no que diz respeito aos direitos de autor.
O poeta chama a atenção para algumas perturbações no desenvolvimento recíproco da música e da letra do fado. Um dos problemas é a falta de pessoas aptas que queiram dedicar-se mais ao fado. Por agora, os novos escritores dentro do fado são poucos, e consequentemente os materiais novos são raros. Segundo o poeta, "Sinto que as pessoas são muito apegas ao que o Fernando Maurício fez, ou ao que a Amália fez." Ele acha a situação até "um pouco ridícula. Há jovens a cantar coisas que Amália cantou com 70 anos. Mas uma menina de 21 não tem a vivência para isto." Acrescenta, "O convívio entre os poetas e os fadistas é difícil, situação que não acontecia até ao fado estar tão na moda." Continua, "É mais fácil para mim mostrar uma canção a um grande cantor do Brasil do que mostá-la no meu pais mostrar a um fadista da nova vaga, salvo algumas excepções."
Segundo o Tiago Torres da Silva, neste momento dentro do fado "há muito sucesso, mas não há tanto coração como sucesso. E o fado sem coração a mim não me interessa." Mas em termos de arte de cantar e de dizer, ele opina que "há gente espantosa," entre os quais estão a Carminho, o Ricardo Ribeiro, e o Camané. Acrescenta, "Mas não sinto que haja algo de novo a aparecer. Sinto que em termos da proposta fadista, a última revolução foi aquela que o Alain Oulman e a Amália protagonizaram nos finais dos anos sessenta, início dos anos setenta." O autor não disse isto para se queixar--pois há muitos fadistas que tem cantado e que continuam a cantar os seus poemas--"disse-o apenas para iluminar uma situação que previra um corte potencial na tradição do fado."
O poeta põe um ponto final neste assunto da seguinte forma: "O fado quando não é cantado com o que nós vivemos, ou quando não é escrito com o que nós vivemos, ou quando não é composto com o que nos vivemos, fica sempre menos fado. Pode ficar uma muito boa música mas, atenção, fica menos fado."
Para quem quer saber mais:
Tiago Torres da Silva em entrevista na RDP Internacional
Tiago Torres da Silva a declamar no Palácio de Belém
Blogue do autor
Entrada no Wikipedia
Nota:
[1] Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional. Fernando Pessoa (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução organizada por Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1979. - 98. 1ª publ. in Notícias Ilustrado , 2ª série, nº 44, Lisboa, 14-4-1929.