Wednesday, August 22, 2012

Adeus a um amigo

Venho por aqui falar de um grande amigo e fadista, José Maria Fernandes, que faleceu há uma semana. A nossa amizade foi criada juntamente com o fado, ou talvez seja melhor dizer que, quanto mais que conhecíamos, mais que eu compreendi sobre o fado e a bondade que pode ser criado dentro do âmbito fadista. Quando vim com a minha família à Lisboa há alguns anos--sem saber nada do fado actual--foi ele que me introduziu ao mundo fadista que agora faz parte imutável da minha vida.

Na altura quando lá vivimos, frequentávamos a Baiuca em Alfama. Pouco a pouco, fui conversando com os fadistas, os músicos e as outras pessoas que por ali passavam. Gostei de ouvir o José Maria cantar. Ele cantava os clássicos, os fados associados com os fadistas que ele apreciou mas que se encontraram um pouco fora da moda, como o Fernando Farinha e o Tony de Matos. Ele cantava de amor e de solidão. Era romântico, sem pedir desculpas.

Comigo não queria falar das pormenores da sua vida. Um dia perguntei-lhe" "Aonde trabalha?" Respondeu enigmaticamente: "Trabalhava em Alcântara..." Tinha percebido perfeitamente o que eu queria saber, mas não ele recusou de entrar no assunto (sem me ofender). Para muito tempo, eu só sabia que ele era "da outra banda."

Ele vadiava de casa em casa em Alfama, uns dias por semana. Encontrei-o muitas vezes na Baiuca, e anos depois também quando frequentava o Sr. Fado. Como muitos outros fadistas, não queria ganhar dinheiro através do fado: só queria era cantar, a conversar com amigos durante os intervalos ou enquanto ele esperava por sua vez. Fomos uma vez a um território diferente (a Graça) para visitar a Tasca do Jaime. Pôs-se de pé, introduziu-se com humildade, agradeceu a dona, e depois cantou dois fados do coração. Disse-me que gostou, mas percebi que o seu povo, e os seus lugares de hábito, foram todos de Alfama. Por outro lado, ele sempre estava disposto de ir conosco por qualquer lado: às outras casas de fado em Alfama, à Mouraria, etc.

A manter a ordem à porta da Baiuca
Uma vez telefonei-o. Atendeu ao telefone bruscamente, como sempre. Perguntei, "Ó Zé, aonde está?" Estava na casa do Sr. Henrique, no sul do país. "A fazer o que?" A ajudar nisto ou naquilo, para depois regressar à noite para trabalhar no dia seguinte. Outras vezes, estava com as malas prontas para ir à Angola. Sempre a vadiar...

Queria que a minha família fôsse portugueses: eu, a minha esposa, e os meus filhos. Ajudou-me com a burocracia portuguesa, e inventou planos fantásticos para que eu conseguisse manter uma presença permanente em Portugal ("compre um apartamento", "troque o seu trabalho", etc.). Fizemos percursos de pê ou de carro por várias zonas de cidade. Não era jovem, mas andava sempre velozmente, cheio de vontade para lá chegar.

Uma vez que visitámos Lisboa, queria buscá-nos no aeroporto. Disse-me que tinha um carro que servia.  Não o achei possível. "Cabe, cabe. Não se preocupe", respondeu o meu amigo. Chegou com um Citroën antiquíssimo, que não foi nada grande. Mas ele não queria saber nada das minha dúvidas: com uma magia qualquer, conseguiu meter tudo lá dentro--cinco pessoas e todas as malas. Depois da visita, ao regressar ao aeroporto, ofereceu-me uma caixa de discos do fado. Não a queria, mas disse "Leve! Trago uma sempre comigo, e vou dando-a quando me apetecer, depois compro mais uma." Assim, o fado e ele andava sempre a par.

Quando eu estava fora de Portugal, telefonava-o por Skype, e por isso ele não reconhecia o número. Quando atendeu ao telefone, dizia "Alô" duma maneira que transmitiu uma mensagem clara: "Como é que vais explicar esta intrusão?" Eu respondia, "Ó José Maria, é David Mendonça." "Ó David, como está amigo!" E depois era tudo alegria. "É a amizade que conta", dizia ele. (Mesmo na rua, eu nem sempre percebia quando ele sentia pró ou contra alguém, pois resmungava à frente de todos.)
Na Tasca do Jaime

O José Maria vivia com o fado sempre no peito. Quando falávamos, às vezes exprimia os seus sentimentos em termos fadista, sem pretensões e como se fosse a sua própria linguagem. Queria ensinar-me toda a história do fado do que tinha conhecimento, a qual assisti com toda a minha atenção. Introduziu-me ao mundo ocupado por aquelas pessoas que vivem para o fado, e não à conta do fado. O fado do José Maria era um fado puro, que refletia uma sensibilidade profundamente humana, cheia de honestidade, e que não aceitava a falsidade.

A última vez que o vi foi recentemente. Estivemos em Lisboa para uma curta visita. Já tinha percebido que ele não estava bem. Falámos brevemente por telefone, mas foi preciso confirmar os pormenores com a filha dele. Estava sentado à porta da Baiuca, com muitos amigos ao seu redor. (Logo descobri que ele sofreu bastante para lá chegar.)  "Vou cantar" disse ele. A filha protestou, também eu. "Quero." Pediu desculpas da minha esposa por não ser capaz de cantar "Leio em teus olhos", que sempre cantava para ela, e disse que ia cantar outra coisa. Então pôs-se de pé. Num instante, a Baiuca e tudo que não era o meu amigo evaporou. Cantou um "Senhora da Nazaré" do fundo da alma, com toda a força da vida, com muito mais força do que o corpo tinha. Depois saiu subitamente, completamente gasto. Falámos lá fora para uns minutos, mas foi a última vez que o vi. Era tudo pelo fado, e tudo por amizade.